Em pacientes plaquetopênicos, existe receio relacionado ao risco de eventos hemorrágicos durante procedimentos como a punção de um acesso venoso central. Se por um lado devemos evitar o uso excessivo de hemoderivados, por outro lado, devemos trabalhar para redução de eventos hemorrágicos associados à punção nessa população.
Com o uso da ultrassonografia para guiar punções, o número de complicações hemorrágicas relacionadas ao acesso venoso central reduziu. Nos pacientes plaquetopênicos, as evidências e recomendações são conflitantes sobre a partir de qual nível de plaquetas devemos transfundir pacientes de forma profilática antes das punções, no sentido de redução de riscos.
Vamos analisar os gatilhos transfusionais profiláticos das principais sociedades:
- Ministério da Saúde (Brasil): < 50.000.
- American Society of Clinical Oncology: < 40 a 50.000
- British Society of Hematology: < 20.000
- The Association of Anaesthetists of Great Britain & Ireland: < 50.000 (para procedimentos cirúrgicos invasivos ou cirurgias maiores)
Dúvida Clínica:
Em pacientes hematológicos ou graves (UTI) com níveis de plaquetas entre 10.000 e 50.000, não receber plaquetas profiláticas é não-inferior comparado à administração profilática de plaquetas na redução do risco de eventos hemorrágicos associados à punção?
The PACER Trial
Nesse sentido, em maio de 2023, foi publicado no New England Journal of Medicine o artigo “Platelet Transfusion before CVC Placement in Patients with Thrombocytopenia. New England Journal of Medicine”, the PACER Trial. Vamos analisar os principais tópicos do estudo:
Sobre o Estudo
Ensaio clínico multicêntrico randomizado de não-inferioridade em 10 hospitais na Holanda, no período fevereiro de 2016 a março de 2022.
Pacientes
Foram incluídos pacientes com plaquetopenia grave (contagem de plaquetas de 10.000 a 50.000) que estavam sendo tratados na enfermaria de hematologia ou em UTI e necessitavam de um CVC.
Exclusões: Anticoagulantes terapêuticos, deficiência de fatores de coagulação, INR 1,5 ou mais elevado.
Como foi realizada a intervenção?
Transfusão profilática de plaquetas (uma unidade de concentrado de plaquetas) antes do CVC guiado por ultrassom. Já no grupo controle, não foi realizada transfusão antes da punção guiada.
Qual desfecho pesquisado?
Sangramento relacionado ao cateter (grau 2 a 4). Os médicos nos dois grupos deviam ter puncionado pelo menos 50 acessos centrais previamente.
Escala utilizada no estudo: Complicação Hemorrágica Pós-Procedimento
- Grau 0: Sem sangramento;
- Grau 1: hematoma; sangramento que requer menos de 20 minutos de compressão manual para parar;
- Grau 2: Sangramento que requer intervenções menores para ser interrompido, como compressão manual prolongada (> 20 minutos);
- Grau 3: Sangramento que requer intervenção radiológica ou cirúrgica e/ou transfusão de concentrados de hemácias sem instabilidade hemodinâmica;
- Grau 4: Sangramento associado a grave instabilidade hemodinâmica (hipotensão) com taquicardia associada e resultando em aumento na transfusão de concentrados de hemácias ou sangramento fatal.
Resultados
Foram incluídas 373 punções de CVC em um total de 338 pacientes. A contagem média de plaquetas foi de 30.000. Cerca de 50% dos cateteres foram inseridos na veia jugular interna e 40% na subclávia.
Não foi possível demonstrar a não inferioridade, com 4,8% no grupo de transfusão e 11,9% no grupo sem transfusão apresentando sangramento de grau 2-4 após a inserção do CVC (redução absoluta de risco 7,1%, IC 90% 1,3-17,8%).
Na verdade, embora tenham formulado seus resultados dessa maneira, eles realmente demonstraram que a profilaxia é superior.
Não houve sangramentos de grau 4 no estudo. Os sangramentos de grau 3 seguiram a mesma tendência que a taxa geral de sangramento, com 2,1% no grupo de transfusão e 4,9% no grupo sem transfusão.
Pontos de Atenção
Trata-se de trial multicêntrico bem conduzido, excelente acompanhamento e poucas violações de protocolo. No entanto, vale ressaltar que o trial era aberto, sem cegamento dos médicos para a intervenção. Não temos como excluir a possibilidade de efeito Hawthorne, ainda mais quando você sabe que as complicações hemorrágicas relacionadas ao seu procedimento estão sendo avaliadas.
Além disso, diferentes diretrizes sugerem profilaxia em diferentes níveis, variando de 20 a 50.000. O estudo não esclarece esses níveis e os dados não são detalhados o suficiente para avaliar o risco no nível superior dos gatilhos — por exemplo, nos pacientes com contagens de plaquetas entre 40 e 50.000, que algumas pessoas podem não transfundir com base nas diretrizes atuais.
Como o estudo muda minha prática?
Eu continuo a transfundir plaquetas profilaticamente para pacientes com contagem de plaquetas < 50.000 antes da punção guiada de uma CVC.
Referências:
The PACER Trial
van Baarle FLF, van de Weerdt EK, van der Velden WJFM, et al. Platelet Transfusion before CVC Placement in Patients with Thrombocytopenia. N Engl J Med. 2023;388(21):1956-1965. doi:10.1056/NEJMoa2214322
Guidelines para transfusão de plaquetas
- Ministério da Saúde (Brasil) (https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_uso_hemocomponentes_2ed.pdf)
- American Society of Clinical Oncology (https://old-prod.asco.org/sites/new-www.asco.org/files/content-files/2017-platelet-transfusion-summary-table.pdf)
- British Society of Hematology (https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/bjh.14423)
- The Association of Anaesthetists of Great Britain & Ireland (https://anaesthetists.org/Portals/0/PDFs/Guidelines%20PDFs/Guideline_blood_components_alternatives_2016_final.pdf?ver=2018-07-11-163753-007&ver=2018-07-11-163753-007)